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Roupas no varal

  • Foto do escritor: Katherine Carvalho
    Katherine Carvalho
  • 11 de jan.
  • 3 min de leitura
Roupas no varal presas por pregadores coloridos

De manhã vejo a pilha de roupas lavadas sobre a cadeira do quarto. Muito amarrotadas, com descuido tirei tudo da máquina e joguei num canto, estendo depois. Agora estão parecendo uma folha de papel amassada. Mamãe sempre disse pra estender enquanto ainda estão molhadas, assim não precisa nem passar a ferro. 


Hoje eu sei que vai fazer sol, saio pro quintal carregando a pilha de roupas lavadas debaixo do braço. O varal é composto por cinco fios de náilon que correm de uma extremidade a outra do gramado verde nos fundos da casa. 


Vou estendendo as roupas, uma a uma, cheiro de sabão e amaciante se misturando em meu nariz. Um pregador em cada ponta das camisetas, três pregadores na calça jeans que é mais pesada, apenas um pregador em cada pé de meia. O varal é grande demais para roupas de uma pessoa só. 


O vento balançando as roupas no varal traz até mim uma imagem nítida, tão fresca quanto a brisa. Mamãe, neste mesmo quintal, debruçada sobre uma bacia, esfregando ceroulas. Esse é um daqueles momentos em que as lembranças te nocauteiam e você perde o rumo por um instante.


Era assim que ela fazia. Torcia as roupas encharcadas com mãos vermelhas, sacudia no ar para tirar o amarrotado, estendia no varal e deixava os pregadores presos nos lábios para poupar trabalho. Às vezes parava no meio do caminho e cheirava o tecido de uma camiseta, dizia que roupa lavada é um dos cheiros mais maravilhosos do mundo. 


Que bela imitação eu sou! Meu coque desalinhado não me deixa mentir, está exatamente do jeito que ela deixava os próprios cabelos, até os pregadores eu seguro com a boca, mas prendi mais dois fios de náilon pra aumentar o varal desde que ela se foi, então nem tudo permanece o mesmo. 


E que roupas amarrotadas, o que mamãe diria se me visse assim hoje… Repetidamente eu a invoco, prendendo as roupas no varal, cheirando as camisetas recém-lavadas. Talvez essa seja a forma mais bonita de deixá-la viva, ainda que não muito lisonjeira, mas o que se pode fazer? A gente trabalha com o que tem.


E quando o último pregador é colocado na última peça, o vento balança as roupas para cá e para lá, afastando as memórias e levando mamãe para longe de mim. Mas roupa pra lavar tem todo dia, eu a vejo de novo amanhã e, num instante, tudo se acaba e cá estou eu, sozinha de novo no quintal.


Um recado da autora: estender roupas no varal também é um gesto de amor 


Lembro bem de quando dividíamos as tarefas lá em casa. Geralmente minha irmã ficava com a louça e eu cuidava da parte das roupas. A gente fazia do jeitinho que minha mãe mandava, porque senão ela ficava irritada. Foi com ela que aprendi a sacudir a roupa depois de a máquina centrifugar e foi ela que eu vi segurar os prendedores com a boca pela primeira vez, então parte da inspiração para esta crônica vem dela.


Acho que esse é o poder desse tipo de texto, despertar sensações e lembranças através de acontecimentos cotidianos, ressaltar o que há de mais valioso na vida em suas formas mais cruas e simples. E não é assim que as verdadeiras lições são aprendidas no dia a dia? A crônica é um gênero incrivelmente complexo, e eu li muita Clarice Lispector, deve ser por isso que gosto tanto delas. 


Não sei se deu muito certo essa minha primeira tentativa de escrever uma crônica (já fiz isso antes, mas por algum motivo, dessa vez achei extremamente difícil). Se você gostou, deixa um like. Se não gostou, não precisa me dizer porque eu sou sensível.


—


Nota de rodapé

Uma crônica é um texto curto que narra fatos do cotidiano de forma informal e acessível, e que se caracteriza por ser uma mistura de observação, reflexão e prosa. Não exige uma trama complexa ou personagens elaborados, e pode ser escrita como personagem, narrador, testemunho ou observador oculto.

Obrigada!

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